Às vezes a discussão dos fatos se impõe sobre a discussão das ideias. Recentemente, o britânico The Independent publicou uma matéria intitulada “Escolas da Finlândia: Matérias serão jogadas fora e substituídas por ‘tópicos’ com a reforma no sistema educacional do país”, que atraiu a atenção do mundo todo. Aqui no Brasil, o Rescola foi um dos primeiros a repercutir as informações do jornal inglês. Entretanto, alguns dias depois, autoridades da educação finlandesa se manifestaram esclarecendo que a interpretação de que o forte incentivo à transdisciplinaridade previsto na reforma significaria o completo abandono das matérias tradicionais é equivocada.

Em artigo publicado originalmente no The Conversation, e traduzido e reproduzido abaixo a partir de licença Creative Commons, Pasi Sahlberg joga luz sobre os fatos e detalha o que realmente deve acontecer a partir da reforma finlandesa.

Pasi Sahlberg é um dos mais reconhecidos educadores finlandeses, um dos maiores especialistas mundiais em reforma educacional e professor visitante na Harvard Graduate School of Education.

Em seu artigo, Sahlberg detalha muitas iniciativas interessantes – inclusive chamando atenção para a participação dos estudantes no planejamento dos tópicos multidisciplinares, ponto importantíssimo que não foi abordado pelas matérias sobre o assunto – e demonstra que a ideia da transdisciplinaridade está cada vez mais forte na Finlândia. Mas esclarece que, apesar da reforma permitir que alguns professores avancem em direção ao fim do predomínio do ensino baseado em matérias, ela não prescreve a sua completa abolição.


Pai Sahlberg: A reforma escolar da Finlândia não vai acabar completamente com as matérias

A reforma escolar da Finlândia não vai acabar completamente com as matérias

Por Pasi Sahlberg – Professor visitante de Prática em Educação, Graduate School of Education da Harvard University

Os planos da Finlândia de substituir o ensino das matérias escolares clássicas, tais como História ou Inglês por “tópicos” amplos e transversais como parte de uma grande reforma educacional têm atraído atenção global, graças a um artigo do The Independent, um dos confiáveis jornais do Reino Unido. Fiquem calmos: apesar das reformas, as escolas da Finlândia continuarão ensinando matemática, história, artes, música e outras matérias no futuro.

Mas com a nova reforma da educação básica todas as crianças também aprenderão através de períodos dedicados a tópicos mais amplos, como a União Europeia, comunidade e mudança climática, ou os 100 anos da independência da Finlândia, os quais trariam módulos multi-disciplinares em línguas, geografia, ciências e economia.

É importante sublinhar duas peculiaridades fundamentais do sistema educacional finlandês para podermos enxergar o panorama real. Primeiro, a governança educacional é altamente descentralizada, concedendo aos 320 municípios da Finlândia uma significativa liberdade para organizar a escolarização de acordo com as circunstâncias locais. O governo central trata da legislação, avaliza o financiamento local das escolas e provê um framework de referência sobre o que e como as escolas deveriam ensinar.

Segundo, o National Curriculum Framework da Finlândia é um flexível padrão comum que direciona o planejamento curricular no nível das municipalidades e suas escolas. Ele dá aos educadores liberdade para encontrar as melhores formas de oferecer bom ensino e aprendizado a todas as crianças. Portanto, as práticas variam de escola para escola e são frequentemente adaptadas às situações e necessidades locais.

Aprendizagem baseada em fenômenos

A proxima grande reforma que tomará lugar na Finlândia é a introdução de um novo National Curriculum Framework (NCF), a ser efetivado em agosto de 2016.

Ele é um documento de referência que define as metas gerais de escolaridade, descreve os princípios de ensino e aprendizagem, e fornece as diretrizes para a educação especial, bem-estar, serviços de apoio e avaliação dos alunos nas escolas. O conceito de ensino “baseado em fenômenos” – que se distancia das “matérias” e avança em direção a tópicos interdisciplinares – terá um lugar central no novo NCF.

A integração de matérias e uma abordagem holística do ensino e aprendizado não são novidade na Finlândia. Desde os anos 80, as escolas finlandesas têm feito experiências com essa abordagem e ela tem sido parte da cultura de ensino em muitas escolas finlandesas desde então. Essa nova reforma trará mais mudanças para os professores de matérias do ensino médio finlandês que ainda estiverem trabalhando mais em suas próprias matérias do que junto com seus colegas na escola.

As escolas decidem o programa

O que vai mudar em 2016 é que todas as escolas básicas para alunos de 7 a 16 anos de idade deverão ter em seu currículo ao menos um período extendido de ensino e aprendizagem multidisciplinar, baseado em fenômenos. A duração desse período será decidida pelas próprias escolas. Helsinki, a capital nacional e maior sistema educacional, decidiu exigir dois períodos anuais que devem incluir todas as matérias e todos os alunos de todas as escolas da cidade.

Uma escola em Helsinki já organizou seu ensino de forma transdisciplinar; outras escolas terão dois ou mais períodos de algumas semanas cade dedicados a integrar ensino e aprendizagem.

A maioria das escolas básicas de outras partes da Finlândia irá provavelmente ter um “projeto” no qual eles estudarão algumas das suas matérias tradicionais de forma holística. Um diretor educacional de uma cidade de porte médio da Finlândia disse via Twitter acreditar que “o resultado final dessa reforma será 320 variações locais do NCF 2016 e 90% delas se parecerão muito com a situação atual.

Você pode estar imaginando porque as autoridades educacionais da Finlândia estão insistindo agora que todas as escolas invistam tempo em integração e ensino baseado em fenômenos quando as notas dos estudantes finlandeses têm declinado nos mais recentes testes internacionais. A resposta é que os educadores na Finlândia acreditam, bastante corretamente, que escolas deveriam ensinar o que os jovens precisam em suas vidas em vez de tentar trazer a pontuação do país de volta para onde ela estava.

Muitos deles afirmam que o que a juventude finlandesa precisa mais do que antes é de mais conhecimento integrado e capacidades sobre problemas do mundo real. Uma abordagem integrada, baseada em lições de algumas escolas com vasta experiência nisso, eleva a colaboração dos professores nas escolas e torna o aprendizado mais significativo para os estudantes.

Estudantes envolvidos no planejamento de lições

O que a maioria dos artigos sobre a atual reforma educacional da Finlândia tem falhado em cobrir é o aspecto mais surpreendente das reformas. O NFC 2016 determina que os estudantes devem ser envolvidos no planejamento dos períodos de estudo baseado em fenômenos e que eles devem ter voz na avaliação do que eles aprenderam através dele.

Alguns professores na Finlândia veem essa reforma atual como uma ameaça e uma forma errada de melhorar o ensino e aprendizagem nas escolas. Outros professores pensam que derrubar o predomínio das matérias tradicionais e o isolamento do ensino é uma oportunidade para mudanças mais fundamentais nas escolas.

Enquanto algumas escolas vão aproveitar a oportunidade para redesenhar o ensino e a aprendizagem com formas não tradicionais usando o NCF 2016 como guia, outras vão escolher formas mais moderadas. De qualquer forma, por enquanto o ensino de matérias vai continuar existindo de alguma maneira na maioria das escolas básicas da Finlândia.


Renato Carvalho

Designer, Mestre em Design de Tecnologias Educacionais pela Universidade de Toronto. Trabalha por uma Educação focada no estímulo à criatividade, colaboração, autonomia, iniciativa e pensamento crítico.

One thought on “Pasi Sahlberg: A reforma escolar da Finlândia não vai acabar completamente com as matérias

  1. Ao meu ver a Finlandia está avançando na sua maneira de ensinar ! O Brasil com sua extensão territorial e suas diferentes regiões e a diversidade de culturas e, considerando as ideologias políticas arraigadas, precisa primeiro estabelecer os valores que o ensino e a educação quer atingir. Formar docentes capazes de ter uma visão mundial dos acontecimentos. Para isso os mesmos precisam de tempo para ler, se atualizar, ser quase um dicionário ou um computador ambulante sempre , e não ter que permanecer 60 horas semanais nas salas de aula para poder sobreviver financeiramente. Acredito que é muito cedo e muita ambição querer implantar estes métodos num país relativamente novo , grande e com tantos problemas financeiros para resolver, para não falar em corrupção. O básico do básico é a EDUCAÇÃO, depois vem o ENSINO. Até que tem alunos batendo em professores, até que os professores são desmerecidos pelos pais e pela sociedade ,dificilmente nosso país alcançará seu último objetivo:” BRASIL, PÁTRIA EDUCADORA ” !

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