Texto publicado originalmente no site Uma mãe como outra qualquer. Essa carta foi enviada pela mãe do Enzo aos professores dele, no Dia dos Professores, em 2013. Hoje, 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, é uma ótima ocasião para relembrá-la.

Eu, pessoalmente, sempre tive boas experiências com professores. Desde o jardim de infância eu me relacionava bem com eles. No começo da adolescência, gostava de testar a autoridade deles, mas de uma forma extremamente argumentativa – nunca briguei, apesar de questionar bastante muitas atitudes. Além disso, na família e no círculo próximo de amigos, também tenho muitos professores como exemplo de “pessoas boas”, como falamos aqui na Ilha.

Então, foi uma coisa natural, quando o Enzo nasceu, eu esperar que a vida escolar dele fosse algo relativamente tranquilo. Claro, eu encontrei também professores ruins pelo meu caminho, mas nada fora do normal de qualquer profissão, e nada que tivesse atrapalhado a minha vida de verdade. Mas não foi assim. E acho que isso foi o primeiro choque de todo o diagnóstico de autismo do Enzo, porque pra mim sempre foi muito óbvio que, antes de qualquer especialização, treino, curso, a maior qualidade que as pessoas que lidavam com o Enzo precisavam ter era amor. E não amor por ele, porque isso não se pode escolher e é ‘obrigação’ só da família, mas amor pelo que estavam fazendo por ele: a fono tinha que ter amor em ensiná-lo a se comunicar, a psicóloga em ajudá-lo no seu relacionamento e autoestima, e a professora em ensiná-lo a aprender a conviver num ambiente escolar, em orientá-lo para que ele desenvolvesse todo o seu potencial.

Mas, em dois momentos diferentes, vi medo e desdém (e raiva, até) nos olhos de quem deveria acreditar no potencial do meu filho, em quem deveria mostrar para ele como a vida fora do mundinho dele podia ser legal, e meu mundo desabou. Eu sabia que há professores que não têm amor pelo que fazem, como há jornalistas, médicos, secretárias. Mas sentir isso na pele, ou pior, na pele do meu filho (porque toda mãe sabe que a dor no filho dói na gente, às vezes até mais), foi das piores coisas que senti na vida.

Eu gostaria de dizer que esqueci, mas não esqueci, não. Espero, do fundo do coração, que o Enzo já tenha esquecido. Mas, ao mesmo tempo em que não esqueço, minha memória e meu coração vão se preenchendo de uma série de outras lembranças. Lembranças de sorrisos. De cenas que eu apenas sonhava em ver: o Enzo sentado à mesa junto com os colegas. O Enzo segurando um pincel. O Enzo brincando no meio das outras crianças, ainda que fosse jogando areia para cima, numa brincadeira que fazia sentido só para ele. O ano de 2012 passou, e a tempestade passou com ele: em dezembro, o Enzo era uma criança muito, muito diferente.

E veio 2013, e pela primeira vez, eu não me preocupei com a nova professora. Estava curiosa, mas estava segura, porque sabia que a escola inteira estava envolvida com os desafios do Enzo, de uma forma ou de outra. E é isso que mais me apaixona: a equipe que trabalha diretamente com o Enzo faz um trabalho extraordinário, e é responsável direta pelo desenvolvimento deles, e se meu reconhecimento valesse algo (quem dera, né?), estariam todos milionários. Mas não adiantaria eles se esforçarem ao máximo se, saindo pela porta da sala da turminha, o Enzo não encontrasse um ambiente propício ao desenvolvimento dele. Meu coração se aquece a cada manhã em que levo o meu filho e ele passa pelo corredor como um candidato a vereador, cumprimentando e beijando as pessoas. Esse trabalho em conjunto faz toda a diferença e às vezes eu acho que vocês não conseguem ver a grandiosidade do que vocês têm em mãos, em como vocês, todos juntos, formam um exemplo lindo de luta pela educação. Problemas de infraestrutura? Profissionais de mau humor? Desânimo? Há, certamente. Nada nem ninguém é perfeito. Mas, ao entrar na escola de vocês, a gente sente que, acima de tudo, há amor em educar.

Os motivos deste ser um texto escrito, e não falado, é simples: eu não conseguiria passar da segunda frase se tivesse que agradecer desta forma, ao vivo. Porque 2013 está passando, e coisas incríveis têm acontecido. Ninguém nesse mundo acredita mais no meu filho do que eu, mas quando se é mãe de uma criança especial, a gente passa muito tempo reprimindo expectativas, mudando-as, não só para não se frustrar quando as coisas não dão tão certo, mas também para não cobrar demais dos filhos. E de repente, coisas que eu pensei que levariam ANOS para acontecer, desenrolam-se em meses… Meu filho hoje tem pança! Ele chama crianças desconhecidas num parquinho para brincar. Ele me conta, espontaneamente, coisas que aconteceram no dia dele. Ele come muito bem. Explica como ele quer brincar. Ele reclama, ele contra-argumenta. Ele conversa comigo. Ele imagina histórias, cenários e personagens. Uma criança que, diziam, teria muita dificuldade com o lúdico e a imaginação.

Já perdi as contas das vezes que engasguei nos corredores do NEI. De alegria, de emoção. Das vezes em que quis dizer isso tudo que estou dizendo agora, que queria tentar explicar o que sinto com atitudes simples, mas cheias de carinho que vocês têm com ele. E tudo o que sai é um “obrigado” meia-boca, porque a pessoa aqui pode escrever por horas, mas falar sem chorar (e chorar muito) é tarefa quase impossível… Mas não podia deixar passar esse dia 15 de outubro em branco. Porque vocês, e o conjunto que vocês formam, pra mim são a representação máxima dessa profissão tão linda.

Mais de uma vez eu comentei que em dias de chuva a minha admiração se multiplica por vocês conseguirem ficar numa sala cheia de crianças sem enlouquecer. Todos os níveis de professores têm seu valor, mas os da educação infantil, acho, para serem realizados, precisam também ter um senso de abnegação, afinal, a maioria de seus alunos não vão lembrar com detalhes das “aulas”. Alguns podem acabar esquecendo o nome das ‘tias’. Dos seus aluninhos, poucas vezes vão ouvir um ‘obrigado por me ensinar’. Muitas vezes, por fazerem o necessário (mandar escovar os dentes, dar uma bronca merecida), ainda vão ouvir um “chata e feia”. São alunos que nem sempre sabem expressar o que sentem. Definitivamente, não é uma profissão fácil.

Ao mesmo tempo, dá uma certa invejinha. Porque eu amo meu filho e sei que farei diferença na vida dele, mas não sei se já ajudei outra pessoa de fora da família. Se fui o motor de uma mudança que fez a diferença na vida de alguém. Eu sempre pensei comigo mesma que, se ao fim da minha vida olhasse pra trás e percebesse que eu ajudei alguém a ‘tomar tento’ na vida, eu morreria feliz. E vocês fazem isso todo dia. Talvez vocês não consigam resolver o problema de 100% das crianças (afinal, não depende só de vocês), provavelmente alguma coisa que vocês poderiam fazer passa despercebida e não é feita, mas eu tenho certeza que vocês já fizeram muitas famílias mais felizes. Ver um filho crescendo seguro, alegre e saudável não tem preço. E, especificamente sobre mim e o Enzo, eu posso dizer: vocês salvaram o meu filho, e hoje somos absurdamente mais felizes que há um ano.

Nem todos os obrigados do mundo serão suficientes, mas eu não me canso de repetir. Obrigada, obrigada, obrigada. Que a vida de vocês seja sempre abençoada e que vocês possam continuar espalhando coisas boas. Que haja mais professores e professoras como vocês.

Feliz Dia dos Professores!


Sabrina D'Aquino

Sabrina D'Aquino é jornalista e mãe de uma criança autista.

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